domingo, 28 de junho de 2009

sabores de verão


sentados à mesa, depois de uma refeição cheia de tudo aquilo que preenche o verão, chegava a hora daquele fruto vermelho que cortavas em pedaços com o teu canivete de bolso. para mim, adiantavas o castelo da melancia, quase limpo, que fazia a inveja dos outros, então distraídos. se não te restasse outro remédio senão distribuir, guardavas-me o pedaço maior, o mais limpo e sumarento. deixáva-lo cair no meu prato de sobremesa, enquanto me piscavas os olhos em jeito de cumplicidade. salpicavas a toalha. recordo-me sempre do sabor fresco quando a provava. o verão a entrar-me no corpo. os nossos gritos a encherem a mesa e a vida com todo o seu sabor. os teus olhos pequenos a brilharem, enquanto me repetias que este e aquele havia casado ou morrido ou outra coisa qualquer. mais crescida, e por mais que me esforçasse, não fazia a mais pálida idéia de quem falavas, mas ia dizendo que sim, para que continuasses a falar e permanecesses comigo à mesa. recordo-me que quase todos os nomes que citavas terminavam em "ito/a" ou "ino/a": Jaquinito, Firmino... também tenho idéia de serem primos ou primos dos primos. ou até vizinhos de primos. na verdade, quase acredito nunca os ter visto, mas gostava de te ouvir falar. às vezes, à tardinha, sentávamo-nos outra vez e cortavas, com o mesmo canivete, lascas de peixe seco que me enchiam a alma. rias-te muito e a tua barriga tremia. às vezes, bebíamos cerveja. tu preferias preta. nunca compreendi por que motivo acompanhávamos o peixe seco (agulha ou atum, que era ainda melhor) com pão, mas cumpri sempre esse ritual até hoje. e falavas dos -itos e -inos, pondo-me ao corrente das novidades acerca de pessoas que eu não sabia bem quem eram. rias-te quando me ouvias dizer uma piada, propositadamente atirada para ver os teus olhos ficarem ainda mais pequeninos. chamavas-me de uma forma que mais ninguém fazia. não sei quando começou a nossa cumplicidade. a M. disse-me uma vez que eu era muito pequena e o momento pouco feliz, mas acho que foste tu que engrandeceu o que nos uniu. não tive mais do que os outros mocinhos. passeavas com todos na tua motorizada (era assim que lhe chamavas), no tempo em que não existiam brigadas de trânsito nem se pensava permanentemente nos perigos. desfilavas, orgulhoso, perante o olhar dos teus amigos, que acenavam a rir, enquanto nós vibrávamos com a velocidade alucinante de 30 ou 40 km/hora! levavas 3 ou 4 de nós na mesma corrida, enquanto os restantes aguardavam junto à parede de cal da casa que serviu de cenário aos verões da nossa infância. a tarde era coroada com um gelado para cada um, comprados na barraquinha daquela senhora cujo nome não me recordo, mas que terminava certamente em -ita ou -ina. uma vez, há muito, muito tempo, íamos as três contigo recolher umas ervas para os coelhinhos que nos haviam comprado e acabámos os quatro caídos num buraco, com a mota virada. à tua pergunta "aleijaram-se?", respondemos que não, eufóricos por termos sobrevivido àquilo que, para nós, foi um "desastre". em casa, ainda tiveste de ouvir "porque foi perigoso, porque podia ter sido grave, por isto, por aquilo", mas tu esquecias qualquer risco perante os nossos desejos. e rias. muito.


lembrei-me de tudo isto enquanto saboreava o castelo de uma melancia fresquinha, ainda que não tenha sido cortada com o teu canivete de bolso.

1 comentário:

fr disse...

São estas as memórias que nos enchem de sumo. Feitas de castelos e risos. Fizeste-me lembrar das minhas...obrigada :)